terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O Haiti como lição aos sistemas mundiais de reação emergencial

Reservei este espaço para tratar da questão Haiti. Ainda que não se trate sobre assunto específico ao desenvolvimento brasileiro, o Brasil assume papel protagonista nas forças de reconstrução, bem como na organização de sistema de ajuda emergencial.
Certamente não haveria como ter menos comoção pelo sofrimento dos haitianos que aquele que se inflamou pelo noticiário. O terremoto que assolou a capital Porto Príncipe fez com que 2010 começasse mais difícil para o país caribenho. Não mais fácil é o desafio de reconstrução dessa parte da ilha, que a despeito de se falar francês, já foi terra espanhola.

Um pouco de história....
O Haiti é cheio de contradições. Por que ali se fala francês e não espanhol? A primeira dedução é que seu território foi conquistado pelos franceses. Pois sim, mas só depois de séculos de pertencer à Espanha. A ilha que agora compartem Haiti e República Dominicana se chamava a princípio ‘La Española’. Logo foi dividida porque os piratas e bucaneros franceses foram tomando pouco a pouco, até que a partir de um tratado a Espanha cedeu este território à França.
Haiti foi a colônia mais rica do mundo no século XVIII. Era responsável por um quarto do PIB francês, graças à produção de açúcar. Naquela época, metade da produção mundial de café e açúcar saia de lá, não de Santo Domingo, a colônia espanhola do lado oriental da ilha, futura República Dominicana.
A guerra de independência foi o princípio da decadência haitiana. Em 1804 declarou sua emancipação da França e a liberdade dos escravos. Seu território foi destruído pelos combates e logo enfrentou boicote dos Estados Unidos, que temia que as idéias do Haiti pudessem incendiar rebeliões de escravos em seu território.
Com sanções comerciais de todos os tipos, os Estados Unidos forçaram os haitianos a contraírem uma dívida colossal, em bancos americanos e franceses, que chegou a US$ 20 bilhões e só foi ressarcida em 1947. Reconhecer o Haiti como país independente, a Casa Branca só fez em 1863, ou seja, com quase 60 anos de atraso. Mais tarde, em 1915, por temerem interferência alemã no Canal do Panamá, os Estados Unidos ocuparam o Haiti e lá ficaram por 19 anos, sendo que nesse período foi imposta uma constituição ao Haiti, sob coordenação de Franklin Roosevelt. A nova constituição foi a gota d’água para a degradação econômica e ambiental do país, cujas luxuriantes florestas de mogno e pinho caribenho foram dizimadas em questão de anos.
Para evitar a reprodução de uma “outra Cuba” nas intermediações, quatro presidentes republicanos e três democratas toleraram as atrocidades e as roubalheiras da ditadura Duvalier, que se perpetuou no poder de 1957 a 1986. Era Bush pai o ocupante do Salão Oval quando o primeiro presidente democraticamente eleito do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, foi derrubado em 1991, com o apoio de Washington. Reconduzido ao governo três anos depois, com o consentimento e coleira segurada por Bill Clinton, Aristide passou três anos tratado como pária pelo Bush filho. Não era o fantoche ideal e acabou derrubado em 2004. Desde que Aristide foi deposto, o Brasil chefia a missão de paz da ONU no país – Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, ou Minustah, na sigla em francês.

Em que contexto...
Pois bem, a despeito de ser o Haiti o primeiro lugar do mundo a por fim formalmente à escravidão, isso não se traduziu, em nenhum momento, em fim da pobreza nem da infâmia. Por isso, oitenta por cento dos seus habitantes emigram e boa parte das pessoas, mesmo antes do tremor, se alimentavam com umas bolachas feitas de tudo e manteiga vegetal.
O Haiti tem um território de vinte e sete mil quilômetros quadrados e nove milhões de habitantes. Um milhão e trezentos mil vivem na capital Porto Príncipe, principal ponto de destruição pelo terremoto. Estima-se que mais de duzentas mil pessoas perderam suas vidas. A incapacidade de organizar uma ajuda rápida está matando mais.
Mais de um milhão de pessoas estão expostas à fome e a doenças e, com as chuvas e as temporadas de furacões se aproximando, ficam vulneráveis a riscos adicionais.
Na capital, há dois mil policiais, muitos deles feridos. Da cadeia, que caiu durante o tremor, escaparam três mil delinqüentes. Pobre Haiti.

Recondução...
O fato é que a tragédia levou o país a uma condição muito anterior à que se encontrava. A economia do Haiti funcionava mal, se recuperando dos quatro furacões ocorridos em 2008. Certamente o país sofreu um retrocesso institucional. A infra-estrutura do governo foi abalada de forma muito radical, sendo que a ONU também teve a sua estrutura comprometida.
A Minustah contava com cerca de 7 mil integrantes. Segundo o Ministério da Defesa, 1.266 militares brasileiros servem na força. Ao todo, são 1.310 brasileiros no Haiti. O governo brasileiro poderá ampliá-la.
No entanto, por onde começar a reorganização do país? Como sistematizar a organização é o grande desafio. A primeira fase de uma resposta eficaz (para as quatro primeiras semanas), deve se concentrar em socorrer sobreviventes e estabilizar o suprimento de alimentos, água, serviços médicos e abrigos para a população. Após um mês, a fase emergencial dará lugar à mesma luta que já dura décadas, para a recuperação e desenvolvimento no longo prazo.
Na conferência realizada em Montreal com foco no Haiti, as delegações presentes à reunião se comprometeram a promover uma reconstrução do país que: fortaleça suas instituições democráticas; fomente o desenvolvimento social e econômico sustentável e promova a estabilidade política no país. Supostamente garantiram que, ao perseguir esses três objetivos, respeitarão a soberania do país caribenho, coordenarão seus esforços, procurarão manter um compromisso de longo prazo - de ao menos dez anos -, serão eficientes e não excludentes e atuarão com transparência. O documento sublinha o “papel coordenador chave” da ONU, ao mesmo tempo em que promete incluir nos esforços de reconstrução as organizações internacionais, nacionais e regionais, assim como as instituições financeiras. Participaram da conferência o ministro francês de Assuntos Exteriores, Bernard Kouchner, a espanhola Maria Teresa Fernández de la Vega, representante da EU, ministros dos países do Grupo de Amigos do Haiti (Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Costa Rica, França, México, Peru, EUA e Uruguai), entre outros.
Entretanto, como confiar na ajuda de reconstrução do país com a constatação de insuficiência institucional internacional transmitida pelos sistemas mundiais na reação emergencial? O fato é que a ONU foi surpreendida pela sua incapacidade de reação emergencial no Haiti. De acordo com Jeffrey D. Sachs – professor de economia e diretor do Instituto Terra da Columbia University –, os sistemas mundiais de reação emergencial – em especial, beneficiando países pobres em zonas mais vulneráveis a terremotos, vulcões, secas, furacões e inundações – precisam ser atualizados.
Sachs pontua que o Haiti precisa evitar um período prolongado de vida em acampamentos nos quais as pessoas são meras refugiadas. Mas onde deveriam morar as pessoas que precisam ser deslocadas – centenas de milhares, talvez mais de um milhão? Como lhes deveriam ser fornecidos alimentos, água, saúde e habitação? E como podem elas começar a contribuir para a reorganização da vida econômica básica?
Ainda segundo Sachs, para os próximos anos, a maioria das atividades econômicas ficará centrada em cinco setores: agricultura de subsistência; reconstrução; serviços portuários e manufatura leve; comércio local em pequena escala e serviços públicos, entre eles atendimento de saúde e educação. O principal desafio, de acordo com o professor, é apoiar esses cinco setores para combinar ajuda de curto prazo com reconstrução e desenvolvimento a longo prazo. E mais, uma estratégia clara é necessária para restabelecer esses setores chave. Quer dizer que cada setor exige uma estratégia de recuperação para cinco anos, com um orçamento nítido e linhas claras de parcerias e responsabilidade interrelacionando o governo haitiano, organizações não governamentais e doadores institucionais – especialmente governos e agencias internacionais.
Espera-se que a lição transmitida pela tragédia do Haiti possa contribuir para uma maior interlocução estratégica e operacional entre as instituições multilaterais internacionais. O Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) já se candidatou à condução do processo de coordenar a multiplicidade de agências que serão envolvidas. O Fundo Internacional para Desenvolvimento Agrícola (Fida) – instituição financeira internacional e agência especializada das Nações Unidas – tem farta experiência, inclusive no próprio Haiti, com sistemas sustentáveis de produção agrícola. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), também presente no Haiti, poderá contribuir na reconstrução da infra-estrutura e o restabelecimento de um setor de manufatura.
Resta saber, por fim, até que ponto e como a ajuda internacional contribuirá para que os próprios haitianos tenham condição de conduzir os rumos do seu país.

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